Os padeiros e o seu trabalho
Valongo, terra de Pão e de Biscoitos, sustenta desde há séculos a fama e o proveito da alta qualidade destes seus produtos. Fama e proveito que sempre foram atribuídas à superior qualidade das farinhas, que, com dedicação e saberes transmitidos entre gerações, se produziam nos inúmeros moinhos que preenchiam as margens do rio Ferreira, e à boa qualidade da água que dos seus solos era extraída.
Assim, possuidores da excelência dos principais (à época únicos) elementos do pão, os muitos padeiros que sempre existiram em Valongo, tornavam este principal alimento apetecido e procurado pelas gentes das terras circundantes, nomeadamente a cidade do Porto, onde, no dorso de mulas ou em carros de bois, os levavam às clientelas que, mais ou menos fixas, os adquiriam e consumiam com muito agrado, dando-lhes assim a fama que perdura até aos nossos tempos.
As padarias que existiam em Valongo, todas de índole familiar, proliferavam nesta terra em sucessão constante. Normalmente e em grande parte, os filhos dos padeiros namoravam e casavam com as filhas de outros padeiros, e assim, procurando a sua independência após o casamento e por serem conhecedores da profissão, quando casavam, instalavam uma nova padaria, permitindo assim que no século dezoito existissem em Valongo mais de duzentas padarias. Este costume de casamentos entre jovens da mesma área profissional prolongou-se até ao século vinte, porque ainda hoje há em Valongo muitos descendentes de casais desse género de uniões.
O fabrico do pão foi sempre um trabalho manual, árduo e de grande esforço. A única máquina que existia, porque era indispensável para o fabrico da regueifa, era um «sovador». Máquina feita de madeira, com dois rolos também de madeira, acoplados a umas rodas dentadas que se moviam manualmente por uma manivela. Quanto ao restante processo de fabrico, desde o amassar, confecionar, enfornar e desenfornar, era todo exercido com a força braçal. Mesmo o sovador, que nessa época se destinava só ao fabrico da regueifa, era mais usado pela altura das festas, nomeadamente a Páscoa, período em que a regueifa era muito fabricada e consumida.
Os tipos ou variedades de pão que se fabricavam em Valongo nessa época eram escassos e a regueifa, por ser um pão requintado e mais caro, era só confecionado e consumido por altura das festas, nomeadamente pela Páscoa, servindo até como folar que, em grande formato, os padrinhos ofereciam aos seus afilhados.
De uma forma geral, todas as famílias de padeiros tinham vários filhos, quatro, cinco ou mais, e, salvo raras exceções, todos se dedicavam à atividade que a família exercia, conjuntamente com algumas criadas e criados internos que era normal todos terem, e que viviam na casa dos patrões em forma familiar.
Porque todos os padeiros tinham animais, mulas ou bois, possuíam sempre alguns terrenos que cultivavam, sobretudo alimentos para os seus animais. Estes criados e criadas, para além ajudarem no fabrico do pão, dedicavam-se mais às lides da casa, elas, e eles, aos trabalhos agrícolas.
Nesses tempos idos, o pão que os padeiros de Valongo fabricavam era do tipo «sêmea», pão grande, com um quilo ou mais por unidade, que proporcionava uma produção mais volumosa e com melhores proveitos. Mas a partir do século dezanove, diz-se, no período das invasões francesas, começou a fabricar-se um tipo de pão mais pequeno, que causava uma menor produtividade em termos de volume fabricado. Por essa razão nem todos os padeiros de Valongo aderiram a este tipo de fabrico recusando-se mesmo a modificar a sua normal forma de trabalho, tendo, segundo descrição antiga, nascido daí a fama de Valongo ser a TERRA DO GRANDE, pelo formato tradicional do seu pão.
O trabalho de padeiro, embora fosse rentável – porque todos os padeiros viviam bem, por ser um trabalho noturno, era um trabalho pesado e insano porque não permitia uma vivência normal a quem o exercia. Os padeiros começavam o seu período de trabalho normal, entre as dez e onze horas da noite, trabalhavam toda a noite e até cerca do meio- dia do dia seguinte. Almoçavam, deitavam-se para descansar até oito ou nove horas da noite, jantavam e recomeçavam de novo o seu trabalho, que ao sábado era a dobrar porque ao domingo não havia pão fresco. Dormiam de noite apenas de sábado para domingo, o que não dava tempo para gozar algum outro divertimento. Depois de irem à missa, tinham apenas a tarde livre para algum convívio, mas muitos aproveitavam essa tarde para mais um período de descanso, recomeçando tudo de novo no início da noite como sempre. Como se vê era uma profissão de sacrifício com uma forma de trabalho que não permitia uma vivência saudável.
Os tempos eram outros, bem o sabemos. Não havia leis nem horários de trabalho para ninguém, tudo funcionava de forma livre. Os padeiros trabalhavam de noite, mas os outros trabalhadores também trabalhavam de sol a sol. Felizmente, hoje tudo é diferente, até mesmo o trabalho dos padeiros que, com processos de trabalho mecanizados, bem mais simples e de menor esforço, já não precisam de trabalhar de noite, embora trabalhem ao domingo para nos proporcionarem a todos pão fresco e de qualidade todos os dias da semana.
António Aguiar
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