Vivências

As vivências são produto de experiências diretas com a realidade, resultantes de um saber adquirido; logo fontes de conhecimento.

Os momentos de repouso transformam – se em hiatos necessários para a reflexão e a introspecção fonte, para as conversas geradas nos momentos de convívio, onde se relatava o trabalho, as intrigas, as necessidades e os desejos de um povo trabalhador.

Neste sentido, Maria da Purificação Matos apresenta o texto abaixo citado:

Aquela manhã quente de agosto, teve um sabor diferente: o meu pai levou-me com ele à freguesia, para o ajudar na distribuição de pão!

A carrocita pintada de verde escuro, estava atravancada de gigas carregadas de moletes, sêmeas, tostas e regueifas, cobertas com tiras de estopa grossa, para proteger o pão do calor e do pó.

Com a cabecita protegida por um grande chapéu de palha, sentada muito direita no banco da frente, sentia-me uma grande senhora ao lado do meu pai, que segurava as rédeas do “Conde”, um burro entroncado e de pêlo castanho luzidio, que trotava pelo caminho de terra batida, em direção à pequena povoação, onde os fregueses nos aguardavam.

O calor estival e o cansaço apoderaram-se do meu pai, que dormitou ao longo do caminho. Mas nada de se preocupar, porque o “Conde” sabia de cor onde devia parar e quando se aproximava das casas dos clientes, relinchava para chamar a atenção. Nunca se enganava!

Acabada a volta, regressados a casa, desatrelava-se o Conde e eu ficava a escovar o pêlo do burro (tinha que ficar a brilhar!) e a dar-lhe de comer.

Adorava o Conde, fazia-lhe festas e falava com ele! Contava-lhe as minhas aventuras e desventuras e ele entendia tudo, porque abanava repetidamente a cabeça e olhava-me com aqueles olhos tão bonitos e cheios de meiguice!

O domingo era o dia de folga e de ver a Deus. De manhã, ataviados com as roupas domingueiras, íamos à missa, e de tarde, quando não havia futebol por perto, combinava-se uma reunião de familiares e amigos, na padaria.

Os homens jogavam às cartas e as mulheres aproveitavam para costurar e remendar e pôr a tagarelice em dia, que durante a semana não havia vagar!

A minha mãe fazia um grande rolo recheado de chocolate, no forno ainda quente, e a meio da tarde, havia chá, mas só para o clã feminino, que os homens não eram dessas mariquices: viesse antes o vinho do Porto ou uma aguardente velha ou em casco de carvalho), para dar forças e substância!

Eu era uma miúda caladita e sossegada e sentava-me num banquito de madeira que o meu pai me tinha feito, junto dos jogadores aferroados e barulhentos, seguindo avidamente aquelas mãos grandes e possantes que manipulavam as cartas com destreza e rapidez.

Sabendo que eu tinha acompanhado o meu pai no dia anterior, um dos amigos questionou-me se eu tinha gostado do passeio.

Do alto dos meus seis anitos cheios de sabedoria respondi toda empertigada: “Foi mesmo bom! E sabe que o burro do meu pai é mesmo inteligente! Olhe que ele conhece os fregueses todos e para à porta deles sem ser preciso mandar!”

Nunca percebi o olhar espantado e atordoado do meu pai, nem as gargalhadas ruidosas dos outros presentes! Um deles até se engasgou a beber o vinho do Porto e foi preciso bater-lhe nas costas para ele ficar bem e parar de tossir!

Relato de infância, doce quimera de tardes tranquilas, onde os padeiros disfrutavam seus singelos prazeres de um dia de repouso.

 

Grupo das tradições

Margarida Sousa