Antigas tradições de Valongo
ANTIGAS tradições de Valongo
(Tradições ligadas ao pão)
Valongo, terra de pão e de biscoitos, como qualquer outra terra, no decorrer dos tempos e de forma natural, criou os seus costumes e as suas tradições.
Algumas dessas tradições referentes a estes tipos de atividade, pão e biscoitos, foram vividas, sustentadas e passadas de boca em boca, tanto entre estas famílias dos padeiros como entre outras fora destes setores. Mas com o passar do tempo e a normal evolução social, estas tradições foram perdendo o seu uso, e como é normal, entrando no rol do desuso e do esquecimento.
As poucas pessoas mais antigas e que ainda existem e se lembram, porque assistiram e viveram muitas dessas tradições já perdidas, podem e devem registar e passar para o futuro aquilo que conheceram, para que num qualquer momento futuro, talvez possam ser investigadas, recordadas e reavivadas.
Faziam parte destas tradições perdidas, a grande regueifa, dois, três ou até quatro quilos, que na Páscoa, os padrinhos ofereciam aos seus afilhados, como folar.
No dia de Páscoa, sobretudo da parte da tarde, viam-se passar pelas ruas de Valongo crianças e adolescentes acompanhadas pelos pais, com uma grande regueifa enfiada no braço, vindos da casa dos seus padrinhos, tanto mais felizes quanto maior fosse a sua regueifa.
Os padeiros de Valongo, para além de serem padrinhos de vários familiares, porque as suas famílias eram extensas, e porque tinham sempre trabalhadores (criados/as) de Valongo e de outras terras vizinhas, de uma forma geral, gente muito humilde, por vezes, também eram padrinhos de alguns filhos desses seus trabalhadores, ou seus familiares, que, pela sua condição social, muito agradeciam esta oferta de regueifa, porque muitos, provavelmente, talvez fosse a única vez em cada ano que comiam esse tipo de pão.
Era também uma tradição no sábado de aleluia, véspera de Páscoa, alguns padeiros oferecerem aos filhos dos seus clientes habituais, uma «regueifinha de cornos», que era uma pequena argola achatada feita com massa da regueifa, recortada no bordo, a que se dava esse nome. Vi e usufrui deste bonito costume em casa da minha avó, e conheci outros padeiros que também praticavam essa tradição.
Pelo Carnaval e na véspera do dia de Todos os Santos, era costume, pelo menos nas casas dos padeiros, comer-se a Sopa Seca, que é um doce feito à base de pão, com ovos açúcar e canela, tipo rabanadas, mas que em vez de ser um doce frito, é assado no forno, feito em caçarola de barro. Neste dia, véspera do dia de Todos os Santos, também era normal os padeiros de Valongo, e até algumas outras famílias, fazerem à noite, uma refeição semelhante à ceia da noite de Natal. Dizia-se mesmo que era a primeira consoada do ano.
Todas estas tradições foram-se desvanecendo com o decorrer do tempo, e hoje, apenas um muito pequeno número de famílias mantém esta tradição. Apenas onde ainda existem algumas pessoas antigas, oriundas de antigos padeiros ou seus familiares, que gostam de recordar estas memórias dos seus tempos de meninice, teimando assim em manter estas raízes vividas no passado. Seria muito interessante que esta tradição tão antiga, voltasse a renascer.
A Sopa Seca, talvez por ser um doce, será, provavelmente, a tradição de Valongo referente ao pão, que manteve alguma constância nos costumes de algumas famílias, não só usada nas tradicionais festas indicadas, mas até com alguma regularidade, em outros ocasionais momentos e festas.
Não se conhecem registos históricos onde possamos alicerçar qualquer afirmação ou descrição desta muita antiga tradição, quando, como e porque se iniciou, ou mesmo quaisquer tipos de receitas que então eram usadas. O que se sabe é que esta tradição vem de longe no tempo, e foi passada de boca em boca, de geração em geração, mais nas famílias de padeiros, e que chegou até aos dias de hoje.
Assim, ninguém pode garantir que a sua receita atual ou forma de execução, é a original. A base será provavelmente a indicada, mas a forma atual é ao gosto de cada um ou à forma que algum familiar antepassado teria transmitido. O que importa é que este doce é feito á base de pão e oriundo dos antigos padeiros de Valongo.
De uma forma geral, os padeiros antigos, para poderem levar os seus produtos até outras terras, tinham animais, normalmente Mulas ou Machos e ou bois, e como tinham de alimentar esses animais, alguns, eram também lavradores que cultivavam campos de sua propriedade ou arrendados, necessitando assim de trabalhadores, tanto para os trabalhos agrícolas, como para a sua indústria, e até nos trabalhos domésticos. Os padeiros, para além de normalmente serem famílias com vários filhos que todos trabalhavam em casa, recorriam sempre a outros trabalhadores (criados/as) de Valongo ou de outras terras vizinhas.
Hoje diz-se que este doce foi criado para aproveitamento de sobras de pão. Pessoalmente, não julgo que esta versão seja exata, porque pão, era o que mais havia nas casas dos padeiros. Nos séculos XVIII, XIX ou até mesmo no início de século XX, pelo que conheci, numa grande parte das casas de Valongo, infelizmente, não haveria sobras de pão, talvez até, em muitas dessas casas, nem migalhas houvesse de sobra. No entanto, numa ou noutra casa sem ser de padeiros, poderia haver algumas sobras e aí sim, poderia ser uma forma de aproveitamento de pão.
Talvez, a sua maior divulgação por outras famílias de Valongo, e de outras terras vizinhas, tenha sido feita pelas «criadas» internas que todos os padeiros tinham como serviçais que, por verem as patroas fazerem este doce simples, aprenderam, e assim o divulgaram nas suas casas. Aí sim, talvez fosse mesmo para aproveitamento de algumas sobras de pão.
As receitas que se conhecem, simples, mas sempre à base de pão, podem ser mais ou menos ricas conforme os ingredientes que nelas são incorporados: pão, ovos, açúcar, canela, água ou em alguns casos usando leite em vez de água. A base principal é sempre o pão, açúcar, canela e algo que lhe permita humidade que possibilite formar um doce com uma consistência amolecida. Cada um e com base no que lhe foi transmitido, usa a sua fórmula cujo resultado, embora com muitas semelhanças, marca sempre as sua diferenças.
Com a criação e instituição da Confraria do Pão, da Regueifa e do Biscoito de Valongo, que tem por lema divulgar o pão, seus atributos, benefícios e possibilidade de diversificar o seu consumo, em boa hora se criou e lançou o concurso ou festa da Sopa Seca, contribuindo assim para o reavivar e incrementar esta tão antiga e deliciosa sobremesa.
Hoje podemos dizer que esta iguaria rejuvenesceu e está de novo implantada na sociedade valonguense e não só, como tem sido provado pela afluência e participação que este concurso ou festa anual tem demonstrado, e pelo conhecimento que se vai tendo, e que a sua divulgação tem provocado.
Março de 2020
António Aguiar
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